Quando eu era pequena, lembro que sofria com a falta de personagens negros em desenhos animados ou no universo dos super-heróis. Foi no início nos anos 2000 que, finalmente, pude ter o meu super-herói favorito, o Super Choque, com sua incrível capacidade de manipular eletricidade e magnetismo.
O Super Choque foi inspirado no caso de Virgil D. Hawkins, um homem preto que, nos anos 40, teve o seu ingresso na faculdade de direito da Universidade da Flórida indeferida, em virtude de sua cor. Já sua identidade heroica (“Static”, em inglês) foi baseada na canção homônima de James Brown. Em sua tradução:
“Podemos nos ocupar? ('Até ficarmos tontos!)
Nós podemos fazer isso? (Como Brutus!)
Tirar esse eco? (Deus!)
Me dê um pouco de estática! (Você entendeu!)
Bata em mim! Huh, diga! (Você entendeu!)
Estático! (Não!) Não haverá estática (Não!”)”
O racismo severo me atingiu até na infância, dentro do espaço escolar. Lembro que o meu cabelo crespo, ainda que alisado, era atacado pelas demais crianças, transformando o meu orgulho em ter um super-herói, com cabelos como o meu, em chacota. Hoje entendo que, aquela “brincadeira”, que me fazia tão mal, é conhecido como racismo recreativo.
Durante o meu crescimento, em um processo bastante difícil, passei a questionar de onde tirava tanto ódio pelo o meu cabelo; o motivo pelo qual nunca via beleza nele. E, foi quando comecei a ler e conhecer mais sobre a minha ancestralidade, que percebi o quanto meu cabelo é força e, por isso, gostaria de compartilhar com vocês algumas dessas histórias:
Você sabia que o cabelo crespo consegue manter uma camada de ar com poucos centímetros entre a cabeça e o ambiente, e esse espaço serve de refrigeração? Já o crescimento em mola ou em Z forma uma proteção para o couro cabeludo em relação ao sol quente africano com ausência de sombras? Sim, nossos cabelos são frutos de nossa evolução, a fim de suportarmos as grandes temperaturas do continente Africano.
No Brasil, o cabelo crespo chegou junto com os escravizados, tendo um papel fundamental para o fortalecimento dos quilombos. As tranças nagôs que serviam para expressar religião, parentesco, estado, idade, etnia e outros atributos de identidade, na diáspora eram utilizadas como mapa, mostrando os caminhos para os quilombos.
Foto: Luana Cruz
Após a “abolição” da escravatura, o Brasil passou por um longo período de embranquecimento. Acreditava-se que, após um determinado período, não haveria mais negros no Brasil e a escravidão seria esquecida. Porém, mesmo com doações de terras e quantias para casamentos inter-raciais, o número de negros do Brasil só aumentava. Então, com o passar dos séculos, o racismo estrutural, por meio do padrão eurocêntrico, fez com que buscássemos traços da branquitude para melhor sermos aceitas e então, entramos na era do alisamento capilar.
Bell Hocks retratou, em seu livro, o anseio pela aceitação
“Para cada uma de nós, passar o pente quente é um ritual importante. Não é um símbolo de nosso anseio em tornar-nos brancas. (...) É um símbolo de nosso desejo de sermos mulheres”.
A supremacia branca utilizava certos padrões de beleza, para continuar nos inviabilizando, a tentativa de nos coisificar é constante.
Nos Estados Unidos, a trajetória do black power ganhou força nos anos 60 e o crespo começou a ganhar espaço, tornando-se uma das marcas na luta pelos direitos civis no país. As mulheres, que por décadas foram condicionadas a alisar o cabelo, tornaram-se grandes símbolos de resistência ao decidirem andar pelas ruas com seus cabelos naturais. Um grande golpe em desfavor do racismo estrutural.
Fonte: internet
Também na década de 70, no Brasil, a luta pelo resgate de nossa identidade ganhou forças com os movimentos sociais negros e a presença de grandes nomes, como Abdias de Nascimento, Beatriz Nascimento e Lélia Gonzalez. O movimento negro lutou veemente pela defesa da identidade negra e pela quebra da era do silenciamento racial, expondo o racismo institucionalizado e enraizado na sociedade brasileira.
O cabelo crespo é um símbolo que vai bem além da estética e, para nós, representa a luta de nossos ancestrais e a determinação em manter viva a identidade de quem lutou pelos seus direitos. Na busca de direitos, cabelo é identidade e é também um símbolo de respeito.
E foi assim que, após duas décadas, percebi que assumir meu crespo 4C é um ato político, gera incômodo e revolta à supremacia branca, reafirma minha identidade e mostra que além de existir, eu resisto. Afinal, como diz Lélia Gonzalez:
“A gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha dentre outras, mas tornar-se negra é uma conquista”.
Juliana Lima
Advogada
*Este artigo é produzido com o apoio do Fundo Baobá, por meio do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Ele reflete a opinião da Abayomi Juristas Negras e não dos apoiadores que contribuíram com sua produção.
Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural?. Gomes, Nilma L.
A ditadura dos cabelos lisos: Um estudo sobre as consequências de se ter um cabelo crespo. Santos, Layse B.
Alisando o Nosso Cabelo. Hooks, Bell.
A identidade da mulher negra através do cabelo. Carvalho, Eliane P.
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