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Um negro no pós-Abolição: a vida e o fim de Lima Barreto, o visionário marcado pelo 13 de maio

"Mas com aquele feitio mental de criança, só uma coisa me ficou: livre! Livre! Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitação aos propósitos da nossa fantasia", assim Lima Barreto escreveu sobre uma memória de sua infância, quando soube que a escravidão tinha sido abolida no Brasil em 13 de maio de 1888.


Carioca, nascido em 13 de maio de 1881 exatos sete anos antes da Abolição escritor e jornalista, Lima é um dos maiores nomes da literatura brasileira, sendo até hoje lembrado pelos seus escritos cheios de acidez e crítica, como os “O triste fim de Policarpo Quaresma”, “Clara dos Anjos” e “Recordações do escrivão Isaías Caminha”.


O sucesso e a relevância que a obra de Lima teve após sua morte, todavia, contrastam com a falta de sucesso profissional e felicidade pessoal enquanto esteve vivo: teve a vida retalhada desde muito moço, perdeu sua mãe em 1886, conviveu com a loucura de seu pai durante toda a vida e sofreu com as disparidades sociais em relação ao negro, ao pobre e à mulher. Além disso, dentro de todo esse contexto, ainda enfrentou o alcoolismo e internações em hospícios uma questão importante, tendo em vista o medo que o autor carregou, durante toda a vida, de enlouquecer como o pai.


Ficha de internação de Lima Barreto no Hospício de Alienados do Rio de Janeiro, em 1914. Foi a primeira internação do escritor.


A frase acima, embora demonstre a alegria do menino Lima ante a Abolição, ruiu frente à dura realidade de seu tempo: o negro estava livre, porém continuava segregado dentro de todas as instâncias da sociedade; a Abolição veio, mas não as medidas de inserção para o negro.


Veio a emancipação, mas não a igualdade. Assim, as feridas da escravidão continuavam abertas.


Essa realidade rompe completamente com seu sonho de liberdade, pois, mesmo superando a escravidão, o Brasil arrumava outros meios, como o Racismo Científico institucionalizado, que tomou grandes proporções nas Faculdades brasileiras do início do século XX¹, para oprimir o negro.


Vale mencionar que, tirando a perda de sua mãe, não existe algo que tenha ajudado a marcar de forma tão dolorosa a infância de Lima Barreto como o racismo que sofreu. Inúmeros casos foram descritos pelo autor nos seus relatos e demonstram os sofrimentos que padeceu por causa da cor de sua pele desde muito moço.


Uma das experiências que mais marcou o jovem ocorreu quando ele tinha 19 anos, a qual retratou na sua obra “Recordações do escrivão Isaías Caminha”. Certa vez, numa estação de trem, ele estava comprando algo para se alimentar. Após a demora no recebimento do troco, reclamou pedindo que aquilo fosse feito de forma mais rápida. A resposta veio cortante: "que pressa tem você!? Aqui não se rouba fique sabendo!". Logo após isso, um menino loiro fez o pedido do troco e o recebeu de forma dócil. A referência a um roubo, claramente feita por causa da cor de sua pele, e a diferença de tratamentos dilaceraram o coração do jovem, que escreveu: "curti por segundos uma raiva muda, e por pouco ela não rebentou em prantos".² O garoto não entendeu a razão da diferença, pois, segundo ele mesmo, não era "hediondo, nem repugnante" o seu rosto, estava sadio e bem vestido, por isso mesmo chegou a se perguntar: "porque seria então, meu Deus?". A resposta era simples: numa sociedade racista, a cor da pele divide, fere, machuca, dilacera, oprime e mata.


Lima viveu numa sociedade em que pouco tempo atrás os negros eram escravos, porém mais de 130 anos se passaram e pouca coisa mudou, pois o negro quase que permanece na mesma posição: com as oportunidades cortadas pela cor de sua pele, com vidas tiradas num genocídio desenfreado e com o coração e a mente dilacerados por um racismo sempre impune.


Como diria Lima: “por que será, meu Deus?” A diferença entre nós e o jovem de 19 anos é que sabemos a resposta, porém a maioria se cala frente a ela.


Assim, Lima cresce e se coloca como crítico à jovem República brasileira, atacando a política, os literatos, a elite econômica, os jornais, o racismo e a desigualdade social, buscando mais igualdade para si e para todos. Todo esse sofrimento familiar e os problemas sociais que enfrentou desde muito jovem moldaram um Lima rebelde, mas também triste, rendido ao alcoolismo e enfrentando o medo do fracasso e da loucura. Talvez isso seja o que mais resuma Lima: revoltado ante as desigualdades sociais e sofrendo a dor de cada uma delas da forma mais intensa, mas nunca calado. Lima morreu em 1922, vítima de um infarto decorrente do abuso de álcool, seu pai morreu dois dias depois e acompanhou seu filho.


O pós-Abolição demonstrou, assim, um Brasil que transformava rapidamente seus meios de opressão, buscando sempre modos de perpetuar as diferenças sociais e naturalizar os problemas, isentando-se da responsabilidade de resolvê-los. A Abolição prometeu igualdade, mas entregou exclusão. Lima foi massacrado por esse contexto, seus escritos demonstram a dor que ele sentia. Ainda hoje podemos ver tantos outros “Limas”: negras e negros que, dia após dia, lutam para sobreviver na luta contra o racismo, que está emaranhado no seio da nossa sociedade, pois, como já dissemos, mais de um século se passou, entretanto pouca coisa mudou, e a luta de Lima continua sendo a nossa luta.


O 13 de maio não é dia de comemorar, é dia de refletir, é dia de luta, lembremo-nos disso e, principalmente, lutemos.




Jeremias Jeffeson Gomes da Silva.

Graduando em História pela UFPE e criador do Bisneto da Diáspora

(Instagram: @bisnetodadiaspora)





¹ SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: São Paulo, Companhia das Letras, 1993. ² BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Companhia das letras, 2010. P. 75, 79-80




*Este artigo é produzido com o apoio do Fundo Baobá, por meio do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco.

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