O insigne jurista Boaventura de Souza Santos tem uma citação extraordinária que merece ser colocada como ponto de partida para a presente discussão: "Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades."
O trecho deixa nítida a ideia de que o discurso de sermos iguais ou de sermos diferentes pode ser facilmente manipulável em benefício ou em prejuízo de populações vulneráveis. Em tempo de corona vírus, é preciso muito mais atenção para não cair nesta armadilha.
Nos meios de comunicação, recebemos a mensagem de que todas/os, sem exceção, devem ficar em casa. Nos dizem que as ações que estão sendo pensadas são para benefício coletivo. Afirmam que estamos todas/os no mesmo barco e pedem que sejamos pessoas solidárias. Mas, precisamos ter um olhar mais crítico para perceber que esta coletividade não inclui os grupos marginalizados, que tem suas demandas invisibilizadas em um Brasil que é o segundo país com pior distribuição de renda do mundo, de acordo com Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) da Organização das Nações Unidas (ONU), publicado em dezembro de 2019.
No Brasil, 1% da população concentra 28,3% da renda nacional, ficando atrás apenas do Catar, onde essa proporção chega a 29%. Em outras palavras, podemos perceber que tanto no Catar quanto no Brasil, 1% da população é dona de praticamente um terço de todo o dinheiro do país.
Nos pedem para ficar em isolamento em nossas casas, mas temos mais de 100 mil pessoas em situação de rua, segundo dados do IPEA que reconhece a subnotificação e são pessoas para as quais não há política pública específica divulgada.
No término de 2019, o Brasil contabilizou 38.363 milhões de trabalhadores informais: empregados do setor privado e domésticas sem carteira assinada, conta própria e empregadores sem CNPJ, trabalhadores auxiliares em negócios de família. Estes, não acessam benefícios da CLT e são, em sua maioria, pessoas negras que ocupam as posições menos privilegiadas nos meios de produção formal e informal no mercado de trabalho, resquícios de um período escravocrata que acabou sem a concessão de qualquer política de inclusão social para a população negra.
O drama vivido por empregadas domésticas e diaristas não é novidade. O setor, marginalizado desde o período da escravidão, emprega 7 milhões de pessoas – a maior do mundo. Deste total, diz um estudo de 2015 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que é ligado ao Ministério do Planejamento e também integra o escopo da ONU Mulheres, 3,7 milhões de empregadas domésticas são negras.
Vale lembrar que a primeira morte por corona vírus no Rio de Janeiro foi a de uma empregada doméstica contaminada por sua patroa, que havia retornado de viagem da Itália, e sem acesso às informações quanto a prevenção do vírus. Se estivéssemos no mesmo barco, talvez a empregada poderia ter contraído a doença na Itália, em uma de suas viagens ao exterior, ou teria, no mínimo, acesso às informações suficientes para se prevenir.
Seguindo com o cenário caótico de desigualdades, pessoas com deficiência em dias comuns já não tem direitos básicos para garantir uma vida com o mínimo de dignidade pois, faltam remédios, são grandes as dificuldade de conseguir recursos como cadeiras de rodas, muletas, aparelhos de aferição de glicose, pressão, acompanhamento médico e realização de exames periódicos e, as vezes, sequer acessam seu diagnóstico por possuir doenças raras que o nosso sistema não permite aos profissionais se debruçarem em estudos aprofundados.
Reforçando que não há o mínimo de bom senso e boa vontade das/os governantes para reduzir as desigualdades, pedem para lavarmos as mãos com água e sabão, mas em muitas comunidades periféricas falta água há mais de uma semana, nem preciso dizer que álcool em gel é uma total lenda urbana para essas pessoas. Orientar a população a manter uma alimentação saudável para não baixar a imunidade é desarrazoado para um país que morre, em média, 15 (quinze) pessoas por dia por desnutrição, segundo dados do Ministério da Saúde.
Diante destes que são apenas alguns pontos que comprovam o quanto o nosso discurso de igualdade é falacioso, precisamos entender que alguém que é eleito para governar o povo, ao tomar decisões que beneficiam a população não faz mais que sua obrigação enquanto gestor público e quando estas decisões não vêm, a sobrecarga ficará nas costas das pessoas mais fracas.
Para não parecer criticismo aleatório, registramos aqui algumas daquelas que consideramos serem iniciativas razoáveis, proporcionais e sensíveis a serem tomadas por um gestor consciente das realidades díspares contidas em nossa nação, sendo elas: fortalecimento da rede do SUS com aquisição de respiradores; aumento de leitos; construção de hospitais; contratação de profissionais por excepcional interesse público; aquisição de EPIs e materiais que garantam tratamento proporcional a uma porcentagem que provavelmente poderá se contagiar considerando um universo de 215 milhões de brasileiros; taxação das grandes fortunas prevista na Constituição de 88 e nunca efetivada, suspensão do pagamento da dívida pública priorizando a vida das/os brasileiras/os; destinação de valores do fundo partidário para saúde; extinção da Emenda Constitucional nº. 95 que limita o teto dos gastos com saúde; fortes investimentos em pesquisa visando que nossas/os competentes pesquisadoras/es se dediquem a buscar um antidoto para o vírus; união dos entes da federação e dos três poderes para que as decisões saiam conjuntas e alinhadas, visando atingir o bem comum e; nossa última e talvez mais importante sugestão, criação de um comitê para efetivar politicas segmentadas atendendo as especificidades das diversas populações vulneráveis que enfrentam a pandemia de lugares totalmente diversos e suportam seus ônus com muito mais intensidade.
Deu para perceber que para equilibrar a balança da desigualdade, teremos que mexer em privilégios e suas/seus donas/os não aceitarão pacificamente?! Não, não somos iguais e precisamos estar atentas/os para não voltarmos aos navios negreiros. É nosso papel cobrar políticas públicas que nos deem tratamento diferenciado em nossa diversidade e promovam verdadeira equidade para que consigamos garantir a todas as pessoas oportunidades reais de sobreviver a esta pandemia.
Igualdade, se não garantida em seu conceito material que pressupõe tratar desiguais de forma desigual na medida de sua desigualdade, não passa de ilusão. Direitos não são dados, mas sim conquistados e para isso é necessário fazermos pressão social, informação com criticismo e participação popular.
Parafraseando Audre Lorde, “Não serei livre enquanto alguma mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”. Isso mostra que a responsabilidade de construir uma sociedade mais justa e com equidade é uma missão de cada um/a de nós.
Se cuide, se isole, se respeite, mas não se aliene. Entenda que solidariedade diz muito sobre se colocar na pele das outras pessoas, mesmo aquelas são de raça, classe, orientação sexual ou qualquer outra natureza diferente da sua.
Aqui, nós seguimos na luta pelo direito de sermos diferentes, para termos iguais oportunidades de resistir sem virar mais uma vítima fatal do sistema decadente de saúde.
Manoela Alves dos Santos
Mestranda em Direitos Humanos e em Tecnologias Emergentes em Educação, advogada, docente e coordenadora do Núcleo de Práticas Jurídicas da UNINABUCO (Recife). Conselheira Estadual, Vice presidenta da Comissão de Igualdade Racial, secretaria geral da Comissão da Mulher advogada e membra-fundadora da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/PE.
*Este artigo é produzido com o apoio do Fundo Baobá, por meio do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco.
Comments