Em 15 de março de 1915, nasce em Franca/SP, Abdias Nascimento, filho de netos africanos que foram sequestrados e escravizados.
Abdias teve uma infância repleta de vulnerabilidades e, mesmo que não tenha lhe restado outra opção que não fosse começar a trabalhar, aos sete anos completou o segundo grau com diploma de contabilidade, dez anos depois se formou como economista na URJ e, em 1957, fez pós-graduação no Instituto Superior de Estudos Brasileiros e Estudos do Mar.
E não parou por aí. Abdias é Doutor Honoris Causa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, da Universidade Federal da Bahia, da Universidade de Brasília, da Universidade do Estado da Bahia, e da Universidade Obafemi Awolowo em Ilé-Ifé, Nigéria.
Com base nestes dados, já poderíamos considerá-lo um herói, afinal, um neto de escravizados, que teve uma infância com extrema pobreza, conseguir estudar e chegar ao patamar acadêmico que Abdias chegou foi revolucionário. Recordamos que, na década de 50, 50% da população era analfabeta e nós sabemos a cor destas pessoas. E que, em 1878, 37 anos antes de seu nascimento, foi promulgado o decreto 7031 que versava sobre as possibilidades de matriculas para as pessoas do sexo masculino, maiores de 14 anos, livres ou libertos, saudáveis e vacinados. Ainda assim, Abdias se tornou Doutor.
Mas o heroísmo que vamos destacar é fruto de toda a resistência e as conquistas que Abdias garantiu junto com os movimentos sociais.
“Já na década de 30 participou da Frente Negra Brasileira organizador do Congresso Afro-Campineiro, que protestou contra a discriminação racial e discutiu as relações raciais na cidade de Campinas, interior do Estado de São Paulo”. Participou dos movimentos de protesto contra o regime do Estado Novo, o que lhe valeu uma prisão pelo Tribunal de Segurança Nacional. Por resistir à discriminação racial na capital de São Paulo, foi preso na Penitenciária de Carandiru por dois anos. Em 1943, fundou naquela instituição o Teatro do Sentenciado, cujos integrantes, todos os prisioneiros, criavam, ensaiavam e apresentavam seus próprios espetáculos teatrais; também ajudou a fundar o jornal dos prisioneiros. (IPEAFRO)
Outro feito grandioso foi a inauguração do Teatro Experimental do Negro no Rio de Janeiro, que, através do aquilombamento, deu ao povo preto a autoestima necessária para romper com a barreira racial que enquadrava em estereótipos os artistas negros do teatro brasileiro, recuperar e valorizar a nossa identidade e herança africana. Mais uma vez se faz necessário rememorar o que no Brasil se vivia: os atores brancos se pintavam de negros para desempenhar papeis dramáticos. Para além deste empoderamento, em lato sensu, o Teatro ofertou cursos de alfabetização e cultura e isto foi uma resposta imediata ao Estado que, em 1941, decretou a lei de vadiagem como uma medida de encarcerar a população negra.
O Teatro foi responsável pela formação da primeira geração de atores e atrizes negros. e favoreceu a criação de uma dramaturgia que focalizasse a cultura e a experiência de vida dos afro-brasileiros.
Sob a liderança de Abdias, o TEN organizou a Convenção Nacional do Negro (Rio de Janeiro/ São Paulo, 1945-46), que propôs à Assembleia Nacional Constituinte a inclusão de um dispositivo constitucional definindo a discriminação racial como crime de lesa-Pátria uma série de medidas afirmativas anti-discriminatórias. O TEN realizou também a Conferência Nacional do Negro (Rio de Janeiro, 1949), e o 1o Congresso do Negro Brasileiro (Rio de Janeiro, 1950). (IPEAFRO)
Como ser político que era, nosso herói protagonizou o primeiro protesto intelectual afro-brasileiro ao escrever a Carta Aberta a Dacar, denunciando a discriminação racial no Brasil no panorama mundial. Isto em 1964, período em que atuava no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), principal força política de oposição do golpe militar. Deste modo, tornou-se alvo dos militares e foi exilado por 13 anos, período que viveu na Nigéria. Ao retornar, participou das reuniões de fundação do Movimento Negro Unificado contra o Racismo e a Discriminação Racial.
Em 1982, Abdias foi eleito como primeiro deputado negro a defender a causa coletiva da população de origem africana no parlamento brasileiro, introduzindo projetos pioneiros de legislação anti-discriminatória e instaurando as primeiras propostas de ação afirmativa. Nascimento foi integrante da Comissão das Relações Exteriores e, neste cargo, propôs e articulou medidas contra o Apartheid, advogando o rompimento de relações com o regime sul-africano do Apartheid. Já em 1991, Abdias Nascimento se tornou o primeiro senador afrodescendente a dedicar o seu mandato à promoção dos direitos civis e humanos para o povo negro do Brasil.
Sua ligação ancestral é de uma força e poder que mesmo ocupando cargos políticos no Brasil, estava em constante conexão com a mãe África, participando de eventos políticos em todo o continente africano.
Como autor, Abdias publicou dezenas de livros, com destaque para as obras: O Quilombismo e Genocídio do Negro Brasileiro. O autor também foi editor do Jornal Quilombo e das revistas Afriáspora e Thoth.
Sua peça teatral Sortilégio (Mistério Negro), que estreou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro após sete anos de censura policial, foi um marco nas obras de arte que trataram os temas das relações raciais. Sua antologia Dramas para Negros e Prólogo para Brancos (1961) foi a primeira coleção de obras teatrais sobre o mesmo tema e o mesmo aconteceu com o seu livro de poesia Axés do Sangue e da Esperança: Orikis.
Nosso herói já foi descrito como o mais completo intelectual e homem de cultura do mundo africano do século XX. É herói no combate a discriminação racial em nosso país, herói no fortalecimento da nossa cultura, e herói ao ressignificar a palavra quilombo, mobilizando politicamente os movimentos sociais em busca dos diretos humanos e civis da população negra no Brasil. E como todo herói seus atos falam por si, porém não podemos encerrar esse texto sem “ouvi-lo”:
O negro não esteve sob um regime autoritário apenas durante os vinte anos de governo militar; nós estamos sob o regime do autoritarismo há quase 500 anos. Para nós, todos os governos, todos os regimes deste País têm sido ditatoriais, autoritários, e por isso precisamos, agora que falamos em abertura, que estamos às vésperas da construção de um Brasil novo, ter em mente esse dado fundamental para essa nova organização social e política do nosso País. [Os negros que] construíram com sangue, suor, lágrimas e muito sofrimento este País e são considerados cidadãos de segunda classe. Tanto que nos condenam com um racismo ao reverso, quando advogamos o nosso direito de igualdade, o nosso direito de nos vermos representados em todos os níveis de poder. [...] Enquanto não existir a presença negra em todos os níveis de poder, em todas as instituições deste País, estaremos aqui clamando: este Brasil não tem o direito de falar em democracia. (NASCIMENTO, 2014, p.79).
(Depoimento do ativista, intelectual e político Abdias do Nascimento à Assembleia Nacional Constituinte de 1987).
Juliana Lima
Advogada
*Este artigo é produzido com o apoio do Fundo Baobá, por meio do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Ele reflete a opinião da Abayomi Juristas Negras e não dos apoiadores que contribuíram com sua produção.
Referências : https://ipeafro.org.br/personalidades/abdias-nascimento/
NASCIMENTO, Elisa; ABDIAS NASCIMENTO GRANDES VULTOS QUE HONRARAM O SENADO
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