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Da Colônia ao Capitalismo e o enriquecimento sem mérito por meio da subjugação de corpos negros.

Atualizado: 24 de abr. de 2020


Nem sempre o Direito Administrativo esteve sistematizado, mas já ocorriam atos, hoje instituídos como atos administrativos, que influenciavam diretamente as relações entre os poderes e quem a eles estivessem subordinados.


Nesta conversa/reflexão trago como paradigma o exemplo do Alvará nº 3 de 1809 que regulava o Imposto de Meia Siza.


Em 1808, a Família Real e a Corte portuguesa desembarcavam no Brasil, sua principal colônia, por conta do expansionismo de Napoleão na França. Napoleão promoveu um bloqueio continental da Europa contra a Inglaterra, com fins a isolar e enfraquecer o país, entretanto, Portugal resistiu e a França Napoleônica ordenou diversas invasões ao pequeno reino ibérico subordinado economicamente à Inglaterra (por isso o não bloqueio de Portugal contra a Inglaterra). Diante das invasões, nada restou à Família Real e sua Corte a não ser fugir, e o Brasil foi o destino escolhido.


Ocorre que a realeza tinha privilégios, queria ostentar superioridade material (modo de se vestir, moradia, etc.), então o que a sustentaria? De onde se poderia retirar o dinheiro para manter a Família Real e a sua Corte no Brasil? Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco eram as capitanias de onde eram cobrados os impostos. Dentre as mercadorias e produtos como açúcar, tabaco, ouro, diamantes, algodão, café, pau-brasil, carne de porco salgada, charque, milho, feijão, arroz, drogas do sertão, aguardente de cana, peixe, madeira-de-lei, couro, havia a cobrança de impostos sobre pessoas escravizadas e empregos públicos.


A justificativa do Príncipe para a cobrança de impostos, inclusive sobre pessoas escravizadas fora o seguinte:


Eu O Príncipe Recente faço saber aos que o presente Alvará com força de lei virem: que sendo necessário, e forçoso estabelecer novos impostos, para nas urgentes circunstancias, em que se acha o Estado, poder suprir-se as despesas públicas, que sete m aumentado ; não podendo bastar os rendimentos, que haviam, e que eram apropriados a outros tempos, e a mais moderadas precisões : e convindo lançar mão dos que são já conhecidos desde o principio da Monarquia, e que merecem preferência por menos gravosos, e por terem método de arrecadação mais suave, e aprovado pela prática, e experiência: e tendo estas conhecidas vantagens a siza das compras e vendas, maiormente por se pagar em ocasião menos penosa, e quando se transfere o domínio : desejando gravar o menos, que for possível, o livre giro das transações dos meus fiéis vassalos no ordinário da vida civil, para que no uso do direito de propriedade tenham a, maior liberdade, que for compatível com o interesse da causa pública: tendo ouvido o parecer de pessoas doutas, e zelosas do meu real serviço:
Sou servido determinar o seguinte: 
I - [...]; II - Pagar-se-á também em todo este Estado do Brasil para a minha Real Fazenda meia siza, ou cinco por cento do preço das compras e vendas dos escravos ladinos, que se entenderão todos aqueles que não são havidos por compra feita aos negociantes de negros novos, e que entram pela, primeira vez no país, transportados da Costa de África.

A palavra “Siza” ou “Sisa” era a denominação colonial de tributo sobre transmissão intervivos dada ao imposto de transmissão de propriedade, calculado sobre o valor da venda. A denominação “sisa” vem do latim excidere (cortar, separar), sendo por isso conhecida em outros países sob a denominação de accisa ou excise. Outrora era denominado gabela.


Importante observar como a exploração sobre os corpos de pessoas negras escravizadas era exercida a todo o momento e em todas as oportunidades, visto que se levava vantagem com a sua mão de obra gratuita o que, no meu entendimento, gerou enriquecimento ilegítimo, cruel e desumano, embora não ilícito posto ser “legal”, à época. Chamo isso de enriquecimento sem mérito.


Um jantar brasileiro” - Jean-Baptiste Debret


O que mudou? Muito se vê hoje em dia sobre a utilização de corpos de pessoas negras para enriquecimento de outrem, no caso, de pessoas herdeiras da ideologia do poderio, desde a realeza e seus súditos, passando pela organização feudal até o capitalismo.


O capitalismo trouxe a sociedade urbana. As pessoas negras saídas da escravização legal neste contexto foram jogadas à própria sorte, sem condições mínimas de subsistir. O que restava era submissão a trabalho mal remunerado, quando havia. Hoje, estar à própria sorte é novamente mais uma realidade para a população negra. Dos 13,7 milhões de desempregados, 63,7% são negros, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2019. Em estudo da ONG inglesa OXFAM, através do cruzamento de dados da Pnad/IBGE e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mantida a dinâmica atual, somente no ano de 2089 poderá ser que haja igualdade salarial entre brancos e negros, ou seja, 201 anos após a abolição da escravatura.


O que se quer das pessoas negras? Vantagens econômicas.


Quem atualmente paga mais impostos, já que quando empregados, ou trabalhando informalmente recebem algum dinheiro? Será que há alguma relação com o uso dos corpos negros para a continuidade de enriquecimento de pessoas brancas, herdeiras do feudalismo e da colônia? Por que não se taxa grandes fortunas?


Nós estamos nas escolas, nas universidades, nos irmanando e aquilombando para ocupar espaços de discussão e de poder. Não me venham falar em meritocracia, pois não consigo ver nenhum mérito em quem enriqueceu e mantém riquezas econômicas subjugando estrategicamente outras pessoas.


Identificamos perfeitamente o machismo, o racismo, a provocação orquestrada da evasão escolar, o encarceramento em massa, a discriminação, o epistemicídio. Conhecemos o que é necropolítica. Não tenham dúvidas, eu não ando só!



Lígia V. F. da Silva (Lígia Verner)

Advogada; Especialista em Direito Administrativo/UFPE; Professora; Pesquisadora e Produtora Cultural.




*Este artigo é produzido com o apoio do Fundo Baobá, por meio do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco.

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