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Covid – 19: Sua conduta “Microlesiva” pode prejudicar toda a coletividade e ser crime

Atualizado: 24 de abr. de 2020


Muitas vezes as pessoas acreditam que um determinado ato isolado não comprometeria toda a humanidade, mas isto não deve ser considerado correto. Temos hoje um exemplo nítido de como o egoísmo pode afetar e mesmo atingir mortalmente outras pessoas.


Nada do exposto é novidade, o racismo estrutural e estruturante da sociedade já vem dando conta disso há séculos. Entretanto, vivemos um momento em que este tipo de comportamento individualista pode ser considerado uma conduta criminosa abarcada pela Teoria dos Delitos Cumulativos, posto que atinjam direitos constitucionais ensejando protagonismo da Administração Pública, mesmo que em atividade atípica, para que legisle em prol da proteção da coletividade, enaltecendo o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana através do direito à saúde e, consequentemente, à vida.

Quais direitos constitucionais estão sendo afetados (estão em jogo?)?


O direito de locomoção (ir e vir) e os direitos à saúde e à vida, em primeira análise, mas também o direito ao livre exercício de qualquer trabalho e o direito de reunião, por exemplo.


TÍTULO II

Dos Direitos e Garantias Fundamentais


CAPÍTULO I

DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS


Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:


XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;


[...]


XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;


XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;


CAPÍTULO II

DOS DIREITOS SOCIAIS


Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

O que o Direito Penal tem a ver com isso?


O Direito Penal deveria cuidar apenas dos delitos de lesão, porém com a percepção do aumento da existência e da ocorrência de delitos de perigo abstrato contra bens transindividuais, cada vez mais o Direito Penal se aproxima do Direito Administrativo Sancionador. No contexto da pandemia da COVID-19, o Direito Penal alicerça o Direito Administrativo Sancionador quando lhe dá base para que a Administração Púbica possa legislar com o objetivo de gerir de forma mais incisiva, determinado risco maior e geral. O Direito Penal desenvolveu para esse tipo de caso, além de outras, a Teoria dos Delitos de Acumulação.

O que são Delitos de Acumulação?


Também conhecida como Teoria dos Crimes de Acumulação, esses crimes de que a teoria aponta podem ser identificados como uma subespécie de crimes de perigo abstrato. Cuida de condutas que embora isoladamente não causem lesão ou perigo a determinado bem jurídico tutelado, sua permissão acarretaria a repetição da conduta, quer pela mesma pessoa quer por outras pessoas culminando em um elevado número de atos idênticos que de fato causariam real lesão ao bem jurídico amparado e que não poderia contra ele ser permitido tal risco, sobretudo em determinada temporalidade.

O que a Administração Pública pode fazer neste contexto?

Bem, com a possibilidade de a repetição de certas condutas, por acumulação, gerarem uma situação perigosa (no caso o direito de ir e vir sendo exercido irrestritamente contrariando as recomendações da OMS e da maioria das Chefias do Poder Executivo da maioria dos Estados e Municípios, no contexto da pandemia), a Teoria dos Delitos de Acumulação permite à Administração Pública se utilizar do artigo 268 do Código Penal, senão vejamos:


CAPÍTULO III DOS CRIMES CONTRA A SAÚDE PÚBLICA


Infração de medida sanitária preventiva

Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa


Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.

Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.

Observa-se como tudo se encaixa entre o Direito Constitucional, o Direito Penal e o Direito Administrativo em relação à pandemia da COVID–19 e a possibilidade de utilização da Teoria dos Delitos Acumulativos nas perspectiva da proteção à saúde pública em detrimento do direito de locomoção e do exercício do Direito Administrativo sancionador, tanto é que o Supremo Tribunal Federal a partir de uma liminar do Ministro Alexandre de Moraes, autorizou que Estados e Municípios possam adotar medidas para combater o alastramento do contágio pela COVID-19 e consequentemente a proteção à saúde pública, sem ter que seguir a Presidência da República, mas norteados pelas orientações e recomendações baseadas em evidências científicas da OMS e de autoridades da saúde nacional e mundial.

O Supremo Tribunal Federal (guardião da Constituição) e a ADPF 672 /DF proposta pelo Conselho Federal da Ordem de Advogados (as) do Brasil.

Como sabemos ADPF se traduz em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental e a ADPF 672 / DF via CFOAB foi fundamentada no descumprimento do preceito fundamental de que o Estado (União, Estados e Municípios) estavam agindo de forma omissiva ou comissiva na


“adoção de medidas urgentes e eficazes, fundamentadas em evidências científicas e protocolos aprovados por autoridades sanitárias, além de políticas públicas na área da saúde e economia, visando a assegurar o direito à saúde, alimentação e demais direitos sociais e econômicos”

destacando, sobretudo, e principalmente condutas praticadas pelo atual detentor do mandato da Presidência da República nos seguintes termos:

 “governo nem sempre tem feito uso adequado das prerrogativas que detém para enfrentar a emergência de saúde pública, atuando constantemente de forma insuficiente e precária”, mas, ao contrário, praticado “ações irresponsáveis e contrárias aos protocolos de saúde aprovados pela comunidade científica e aplicados pelos Chefes de Estado em todo mundo”. 

Afirma o fundamento da proposta da ADPF que o Presidente da República, em especial, tornou-se um “agente agravador da crise.”


Continua o texto da decisão resultante da ADPF:

Vários governos estaduais efetivaram medidas de contenção do avanço da contaminação – suspensão de aulas, recomendação de adoção de trabalho remoto, fechamento de shoppings, comércios e parques, interrupção de atividades culturais e recreativas, entre outras – com fundamento na própria Lei 13.979/2020, além da competência conferida pela Constituição Federal (art. 23, II e art. 24, XII) para atuar em prol da saúde pública. O Requerente sustenta que, em vista da situação atualmente vivida, “a atuação de Estados e Municípios torna-se ainda mais crucial porque são as autoridades locais e regionais que têm condições de fazer um diagnóstico em torno do avanço da doença e da capacidade de operação do sistema de saúde em cada localidade”. Por outro lado, o Requerente aponta a atuação pessoal do Presidente da República em nítido contraste com as diretrizes recomendadas pelas autoridades sanitárias de todo mundo, inclusive do Ministério da Saúde Brasileiro.
 

Transcorrida toda a análise da ADPF feita pelo Ministro Alexandre de Morais (que pode ser acessada por aqui), finaliza sua decisão nos seguintes termos:

"(...) CONCEDO PARCIALMENTE A MEDIDA CAUTELAR na arguição de descumprimento de preceito fundamental, ad referendum do Plenário desta SUPREMA CORTE, com base no art. 21, V, do RISTF, para DETERMINAR a efetiva observância dos artigos 23, II e IX; 24, XII; 30, II e 198, todos da Constituição Federal na aplicação da Lei 13.979/20 e dispositivos conexos, RECONHECENDO E ASSEGURANDO O EXERCÍCIO DA COMPETÊNCIA CONCORRENTE DOS GOVERNOS ESTADUAIS E DISTRITAL E SUPLEMENTAR DOS GOVERNOS MUNICIPAIS, cada qual no exercício de suas atribuições e no âmbito de seus respectivos territórios, para a adoção ou manutenção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia, tais como, a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outras; INDEPENDENTEMENTE DE SUPERVENIÊNCIA DE ATO FEDERAL EM SENTIDO CONTRÁRIO, sem prejuízo da COMPETÊNCIA GERAL DA UNIÃO para estabelecer medidas restritivas em todo o território nacional, caso entenda necessário. Obviamente, a validade formal e material de cada ato normativo específico estadual, distrital ou municipal poderá ser analisada individualmente. Intimem-se e publique-se."

Mas afinal, a partir do entendimento em sede liminar do STF, de forma prática como a Administração Pública, pode se utilizar da Teoria dos Delitos Cumulativos para controlar de maneira mais efetiva o cumprimento do distanciamento e do isolamento social durante a pandemia da COVID-19?


Editando um Decreto, exercendo função atípica da Administração Pública, qual seja, a função de legislar.


O Decreto, neste diapasão servirá para detalhar e especificar pontos que o artigo 268 do Código Penal tratou de maneira genérica. Neste contexto com a proliferação da COVID–19 e a não adesão de aproximadamente 50% da população em diversos locais do país, inclusive do próprio atual detentor do mandato presidencial do Brasil, contrariando recomendações científicas, para alcançar os esperados mínimos de 70% de efetivo isolamento social (leia-se: ficar em casa!), é prerrogativa das chefias do Poder executivo de Estados e Municípios editar decretos que expliquem quais condutas poderão incidir no descumprimento de determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa, como por exemplo abrir comércio, exercer todas as atividades de determinada profissão, circular pelas ruas, promover reuniões públicas e até particulares presenciais sem atender ao número máximo permitido de pessoas, entre outras condutas.


Vamos aguardar o protagonismo do Poder Executivo de cada Estado e/ou Município na missão/dever de preservar e salvar vidas através do bem tutelado, saúde coletiva, em tempos de pandemia por cauda do COVID–19, sobretudo cuidando dos locais onde há mais gente e mais precariedade, conseqüência justamente da persistente ausência do Estado, como nas favelas e comunidades superpopulosas, é o que eu realmente espero, pois a circulação da burguesia do asfalto contamina quem pra ela trabalha que prolifera a contaminação toda uma coletividade desamparada, que muitas vezes sequer tem água, sabão e muitas casas nem banheiro (já visitei muitas residências assim), enquanto que caso ocorra contaminação todo o processo de hospitalização e possibilidade de tratamento e cura se torna cada vez mais difícil, mas pelo número da probabilidade de proliferação de contágio o povo pobre das favelas, e de comunidades de povos tradicionais seria o mais vitimado.


Eu não fico em casa e me abstenho de exercer meu livre direito de locomoção pra você ir caminhar no calçadão como se nada estivesse acontecendo! Você insistirá em forçar privilégios mesmos nestes tempos de pandemia? Quantas mais pessoas iguais a você seguirão teu exemplo de puro egoísmo? Só eu que tenho que cumprir as hoje apenas recomendações das autoridades de saúde do mundo e da OMS? Está na hora de haver penalidade por isso, então!


Lembremos de Dona Cleonice Gonçalves, empregada doméstica, que morreu aos 63 anos, vitimada pelo COVID–19 contraído da sua patroa residente do Leblon. Já se perguntaram se quando Dona Cleonice ao pegar transporte público (que opera na enorme maioria das vezes lotado) e percorrer semanalmente 120 km de sua casa humilde em Miguel Pereira, no sul fluminense para trabalhar não chegou a contaminar também involuntariamente, se for este o argumento de algumas pessoas, desta vez um grande número de pessoas? Tudo isso se deu por causa de uma conduta “microlesiva” da patroa dela em não dispensar a empregada do trabalho domestico em sua casa enquanto estava contaminada por COVID–19. Lembrando que nem todo mundo sabe se está ou não com o COVID-19, pois há ainda insuficiência de testagem e muitas pessoas são assintomáticas, portando nestes tempos de pandemia do COVID–19 sua conduta “microlesiva” pode prejudicar toda a coletividade...


Lígia V. F. da Silva (Lígia Verner)

Advogada; Especialista em Direito Administrativo/UFPE; Professora; Pesquisadora e Produtora Cultural.



*Este artigo é produzido com o apoio do Fundo Baobá, por meio do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco.

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