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Dia Internacional da Memória do Tráfico Negreiro

IMAGEM 1 - Essa imagem é um dos primeiros registros de Africanos sendo resgatados de um navio negreiro pela Marinha Real Britânica. Imagem cortesia dos Arquivos Nacionais Britânicos, Serviço de Arquivos Públicos, Londres.


IMAGEM 2 - Imagem de um navio negreiro (JOVENS E CRIANÇAS)

Sabe-se que as práticas de subordinação existiam muito antes do tráfico de pessoas africanas e que ocorriam em todas as partes do mundo, sendo relações de poder entre as pessoas e entre os povos e que isso já era péssimo e descabido, pois não existe e nunca existiu ninguém superior a ninguém e nenhum povo tem o direito de dominar outro.

O que ocorreu foi uma estratégia de transformar aquelas práticas impostas à época em algo altamente lucrativo, deixando de se objetificar as pessoas negras como dominadas e subordinadas em determinados casos e passando a ser consideradas como categoria de mercadoria, objetos de comércio.

No tráfico negreiro havia cerca de 500% de lucro para os comerciantes dos corpos negros, por isso não se importavam com o percentual de aproximadamente 25% de mortes de pessoas escravizadas durante o trajeto em cada viagem de navio negreiro pelo mundo, pois como se pode observar era um negócio altamente lucrativo, não obstante ser absolutamente desumano. Começou então a haver o sequestro dos povos africanos e o transporte em navios que atravessavam os continentes para a venda onde os senhores de engenho aguardavam para escolher entre as pessoas traficadas quais comprariam e teriam como propriedade.

IMAGEM 3 - Armazenamento de pessoas escravizadas em um navio de transporte Transatlântico com quatro conveses negreiros. Planta do navio “Vigilante”.

IMAGEM 4 - Rota do tráfico negreiro para o Brasil

Sabemos que a escravização de pessoas negras traficadas para o Brasil durou aproximadamente de 1531 até 1855 e que neste período quase cinco milhões desembarcaram efetivamente aqui, tudo devidamente legalizado (quem mesmo fazia as leis?). Importante destacar que em 1850 a população brasileira era de oito milhões de pessoas.

Desde já, considerando que estamos falando de memória, não esqueçamos que nos tumbeiros (navios negreiros) vieram pessoas humanas detentoras de modos de vida, culturas, práticas religiosas, línguas e formas de organização política o que nos dá uma identidade social afrodiaspórica ímpar, já que, por mais invisibilidade que se quisesse dar, foram integrantes de toda a nossa construção nacional.

Em Pernambuco, o ponto de chegada, local de quarentena e venda das pessoas escravizadas era a Rua do Bom Jesus, no Recife, já o tráfico ilegal se dava em Porto de Galinhas situado em Ipojuca, na Barra de Catuama em Goiana e na Ilha de Itamaracá, em Itamaracá.

TABELA 1

Desembarque estimado de africanos no Brasil - Século XVIII e quinquênios de 1826-1855


Após séculos desta forma de escravização, houve um movimento para que estas práticas fossem encerradas em todo o mundo.

Aqui também é importante destacar que o receio era que a população aumentasse nos países e em suas denominadas colônias de forma enegrecida, o que há muito já estava ocorrendo, mas que se tornou um indesejável e não calculado tipo de efeito colateral do tráfico de pessoas escravizadas.

Em 1761 Portugal proíbe a importação de pessoas escravizadas das colônias para a metrópole.

A data do Dia Internacional da Lembrança do Tráfico Negreiro e de sua Abolição recorda o início de uma revolta de pessoas negras escravizadas na Ilha de São Domingos ou Ilha de Hispaniola, hoje Haiti e República Dominicana, na noite de 22 para 23 de agosto de 1791.

A Dinamarca foi o primeiro país a proibir o comércio de pessoas escravizadas com um decreto de 1792 que entrou em vigor em 1803, nove anos depois!

No início dos anos 1800 se iniciava a Revolução Industrial da qual a Inglaterra era pioneira, cada vez mais deixando de depender da mão de obra escravizada, porém o açúcar do Brasil, beneficiado pela manutenção do tráfico e pelo uso da mão-de-obra escravizada, obteria preços mais baixos no comércio internacional e as colônias inglesas seriam prejudicadas.

A Inglaterra ter pressionado o Brasil para que eliminasse o tráfico negreiro não foi por bondade e preocupação humanitária, embora houvesse parte disso nas intenções do movimento, mas sim por questões de inovação de mercado.

Também era período do iluminismo, e na religião se achava que a escravização era pecado, e se tinha medo das punições divinas. A participação das mulheres no movimento que pressionava o fim do tráfico de pessoas escravizadas também foi fundamental, pois a participação política feminina era reivindicada, inclusive este engajamento proporcionou fortalecimento para o caminho do sufrágio.

A abolição do tráfico na Inglaterra ocorreu em 1807, sendo em 1833 a decretação do fim da escravização.

Por aqui havia um acordo entre Brasil e Inglaterra para o fim do tráfico negreiro, o que resultou na Lei de 07 de novembro de 1831, conhecida como Lei Feijó, que foi a primeira a aparentemente dificultar o tráfico de pessoas negras para o Brasil, quando em seu artigo 1º determinava que “Todos os escravos, que entrarem no territorio ou portos do Brazil, vindos de fóra, ficam livres”. Havia exceções, entretanto, aos “escravos matriculados no serviço de embarcações pertencentes a paiz, onde a escravidão é permittida...” e “Os que fugirem do territorio, ou embarcação estrangeira, os quaes serão entregues aos senhores que os reclamarem, e reexportados para fóra do Brazil.” (in verbis). Quanto às penas, determinava no seu escopo

Art. 2º - Os importadores de escravos no Brazil incorrerão na pena corporal do artigo cento e setenta e nove do Codigo Criminal, imposta aos que reduzem á escravidão pessoas livres, e na multa de duzentos mil réis por cabeça de cada um dos escravos importados, além de pagarem as despezas da reexportação para qualquer parte da Africa; reexportação, que o Governo fará effectiva com a maior possivel brevidade, contrastando com as autoridades africanas para lhes darem um asylo. Os infractores responderão cada um por si, e por todos.


Na mesma Lei também era prevista recompensa dada pela Fazenda Pública, nos seguintes termos

Art. 5º - Todo aquelle, que der noticia, fornecer os meios de se apprehender qualquer numero de pessoas importadas como escravos, ou sem ter precedido denuncia ou mandado judicial, fizer qualquer apprehensão desta natureza, ou que perante o Juiz de Paz, ou qualquer autoridade local, der noticia do desembarque de pessoas livres, como escravos, por tal maneira que sejam apprehendidos, receberá da Fazenda Publica a quantia de trinta mil réis por pessoa apprehendida.


Nota-se pela TABELA 1, sobre desembarque de pessoas africanas traficadas para o Brasil, que esta Lei não teve efeito, pois mesmo depois de 10 anos seguintes durante a sua vigência, o fluxo do tráfico chegou a ser praticamente o mesmo que os cinco anos anteriores a publicação da referida Lei.

Diz-se que era “lei pra inglês ver”, por se tratar apenas de uma lei no papel, sem nenhuma intenção de que realmente fosse efetivada, a uma porque quem julgaria as causas relativas ao tráfico eram juízes e chefes de polícia ligados muitas vezes em grau de parentesco, quando não eram eles mesmos os grandes compradores e ditos proprietários de pessoas escravizadas e a outra pela falta de fiscalização na costa da província, pois as tropas da marinha estavam deslocadas para combater rebeliões em todo o Brasil. Importante que não se tenha ingenuidade e que se constate que a primeira causa foi realmente a motivadora do total fracasso da forjada Lei Feijó.

Diante disto, o tráfico cruel continuava a ser praticado no país.


Rotas internas e externas do tráfico antes de 1850

IMAGEM 5 - Atlas Histórico do Brasil – Fundação Getúlio Vargas

Pois bem, o Brasil que fez a lei natimorta ‘pra inglês ver’, passou 14 anos praticando e permitindo deliberadamente o tráfico negreiro, inclusive com altos índices de fluxo. A Inglaterra verificando o desacordo e a lucratividade imensa que o Brasil estava obtendo com o tráfico, tomou providências.

Em 1838 Lord Palmerston, ministro do Exterior, autoriza sua marinha a apressar todos os navios de bandeira portuguesa encontrados transportando escravos ou equipamentos para o tráfico de escravos. Em breve tais medidas acabam incluindo os navios com bandeiras brasileiras. Assim é que em 1839 são apreendidos e levados perante a comissão anglobrasileira de Serra Leoa nove barcos, sendo todos condenados. Podemos observar um navio negreiro apreendido na IMAGEM 1 deste artigo.

No período compreendido entre a metade de 1839 e a metade de 1841 foram apressados e condenados mais 27 navios brasileiros. Em 1845, em apenas quatro meses, mais 15 barcos tiveram a mesma sorte. Tornava-se clara, portanto, a eficiência britânica no combate a repressão ao tráfico de escravos. (BETHELL: 2000, p. 151 e seg.).

Em 9 de agosto de 1845, o Parlamento inglês votou o Slave Trade Suppression Act mais conhecido como Bill Aberdeen que radicalizava a ação antitráfico agora considerado pirataria. Pelo novo ato, a Inglaterra adquirira o direito de ordenar a captura de todos os súditos brasileiros encontrados em alto-mar traficando com escravos, de castigá-los como se fossem piratas e de dispor de seus barcos e das mercadorias encontradas a bordo. Estipulava que os comerciantes de escravos presos poderiam ser julgados em tribunais britânicos por pirataria.

Com toda essa pressão, em 04 de setembro de 1850 foi decretada, sancionada e entrou em vigor no Brasil a Lei 581, conhecida como Lei Eusebio de Queiroz, estabelecendo também medidas para a repressão do tráfico negreiro no Império, até porque a anterior não surtiu efeitos, como já visto. Com esta lei o tráfico negreiro passou a ser descrito internamente como pirataria e sua prática punida exatamente conforme o artigo 2º da Lei Feijó, aquela ‘pra inglês ver’. Vejamos o que determinou a Lei 581 de 1850

Dom Pedro, por Graça de Deos, e Unanime Acclamacão dos Povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpetuo do Brasil: Fazemos saber a todos os Nossos Subditos, que a Assemblea Geral Decretou, e Nós Queremos a Lei seguinte. Art. 1º As embarcações brasileiras encontradas em qualquer parte, e as estrangeiras encontradas nos portos, enseadas, ancoradouros, ou mares territoriaes do Brasil, tendo a seu bordo escravos, cuja importação he prohibida pela Lei de sete de Novembro de mil oitocentos trinta e hum, ou havendo-os desembarcado, serão apprehendidas pelas Autoridades, ou pelos Navios de guerra brasileiros, e consideradas importadoras de escravos. Aquellas que não tiverem escravos a bordo, nem os houverem proximamente desembarcado, porêm que se encontrarem com os signaes de se empregarem no trafico de escravos, serão igualmente apprehendidas, e consideradas em tentativa de importação de escravos. Art. 2º O Governo Imperial marcará em Regulamento os signaes que devem constituir a presumpção legal do destino das embarcações ao trafico de escravos. (in verbis)

A Lei foi composta por 10 artigos, mas como estou escrevendo sobre memória do tráfico negreiro, não vou deixar de registrar o descaso e a falta de interesse dispensada pelo Império em relação à vida e ao bem estar das pessoas escravizadas, por isso faço um convite para lermos o seguinte, tal como foi publicado originalmente

Art. 6º Todos os escravos que forem apprehendidos serão reexportados por conta ........ para os portos donde tiverem vindo, ou para qualquer outro ponto fóra do Imperio, que mais conveniente parecer ao Governo; e em quanto essa reexportação se não verificar, serão empregados em trabalho debaixo da tutela do Governo, não sendo em caso algum concedidos os seus serviços a particulares.

Entenderam com o que se preocupavam os governantes? Se meu texto parecia ser uma exaltação à vigência de leis sobre o fim do tráfico de escravos, informo que não tem nada a ver com isso.

É esse tipo de memória da realidade que não pode ser apagada. A memória que deve estar subentendida em todo o contexto do tráfico de escravização de pessoas negras pelo mundo. E que memória é essa? A memória da crueldade, dos assassinatos, da subjugação, das humilhações, das separações, dos sequestros, dos descasos do Estado, do apartheid, da diáspora africana e suas consequências, que no Brasil tem sua forma cruel e especificamente insistente de operar, quando mata nossos jovens negros, quando nos quer nos eitos, quando tenta nos marginalizar e invisibilizar.

Essa memória precisa estar presente sempre, para que as reparações sejam suficientemente eficientes através de ações e políticas públicas pela igualdade, pela dignidade, pelo respeito, pela liberdade, pelos direitos e oportunidades iguais, pela livre vivência do exercício da cidadania plena, pelo bem estar, e nesse contexto pela antidiscriminação e antirracismo com todas as suas especificidades.

E falando em memória, não esqueçamos que é obrigação do Estado desestruturar o racismo já! O Estado sempre soube muito bem como combater o racismo, mas poucas vezes na história realmente teve interesse neste combate e a sociedade também, através das elites racistas, não está interessada nisso.

O que faremos, então?

Se tudo gira em torno da política e da economia, vamos analisar muito bem em que votamos e quem colocamos no poder, pois esse poder também será poder sobre nós, sobre nossas vidas, ou seja, dependendo de a quem entregarmos o poder seremos nós que iremos arcar com as conseqüências das escolhas que fizermos, saibamos utilizar esse micropoder que conquistamos chamado voto para coletivamente nos proteger. Da mesma forma, quando chegarmos a algum posto de poder (mandato, cargo, status, etc.), vamos compor nossas equipes com quem precisa de ascensão e não com quem já domina os campos de poder. Então, combinemos de lembrar que não vamos nos esquecer disso, EM MEMÓRIA DO TRÁFICO NEGREIRO.

Ah! E para não esquecer, lembro que assim que puderem não deixem de assistir ao filme AMISTAD, dirigido por Steven Spielberg, onde o ator Djimon Gaston Hounsou nos leva a imaginar como eram as entranhas de um navio negreiro, o pavor da escravização e a luta por liberdade.

Lígia V. F. da Silva (Lígia Verner)

Advogada; Especialista em Direito Administrativo/UFPE; Professora; Pesquisadora e Produtora Cultural.

*Este artigo é produzido com o apoio do Fundo Baobá, por meio do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco.

Referências

FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Atlas Histórico do Brasil. Do escravo ao imigrante. Disponível em: https://atlas.fgv.br/marcos/do-escravo-ao-imigrante/mapas/rotas-internas-e-externas-do-trafico-antes-de-1850. Acesso em: 14 ago. 2020.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Território brasileiro e povoamento. Disponível em: https://brasil500anos.ibge.gov.br/territorio-brasileiro-e-povoamento/negros.html. Acesso em: 11 ago. 2020.

MATTOS, Hebe; ABREU, Martha; GURAN, Milton. Inventário dos Lugares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos e da História dos Africanos Escravizados no Brasil. Disponível em: http://www.labhoi.uff.br/memoriadotrafico. Acesso em: 11 ago. 2020.

PORTAL GELEDÉS. Navio Negreiro. Disponível em: https://www.geledes.org.br/navio-negreiro/. Acesso em: 14 ago. 2020.

DOMINGUES, Joelza Ester Domingues. Blog: Ensinar História. As pressões britânicas pelo fim do tráfico de escravos. Disponível em: https://ensinarhistoriajoelza.com.br/as-pressoes-britanicas-pelo-fim-do-trafico-de-escravos/. Acesso em: 11 ago. 2020.

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