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Trabalho Doméstico e seu histórico escravocrata

Atualizado: 28 de abr. de 2020


Hoje, 27 de abril, é o Dia da Empregada Doméstica. Utilizamos a data para refletir sobre as raízes escravistas do mercado de trabalho doméstico no Brasil.


Em um passado não tão distante, a atividade doméstica era uma das principais atividades das mulheres africanas escravizadas. Conhecidas como mucamas, estas mulheres tinham como trabalho todas as atividades domésticas e os cuidados dos filhos dos senhorios, além de lidar com os assédios e estupros dos senhores e com os maus tratos das sinhás.


No período colonial, o trabalho escravo doméstico, feito pelas mulheres negras, eram indispensáveis para os senhores e seus familiares por diversos motivos: status social, quanto maior o número de criados mais prestígio social; fonte de renda para os senhores, quando eles as alugavam para outras famílias; entre outros. Por séculos o mercado escravocrata geriu a economia do país. Sim, pessoas escravizadas, trazidas a força de vários países da África, tratadas como bem semovente e que, por muitas vezes, valiam menos que animais rurais, eram a maior fonte de economia do Brasil.


Com a Lei da Abolição, a partir de 1888, uma das formas que as ex-escravizadas encontraram para sobreviver foi a de se tornarem trabalhadoras domésticas nas residências dos senhores, uma vez que a Lei apenas “libertava” a pessoa escravizada, mas não previa auxílio ou ajuda financeira para que ela conseguisse, ao menos, se alimentar. Por isso, mesmo que libertas, era comum que as mulheres exercessem trabalhos domésticos desde a infância, em troca de comida e moradia. Poucas eram remuneradas, e além de serem submetidas à condições precárias de trabalho, também eram submetidas a abusos morais, físicos e sexuais.


A realidade vivida por essas mulheres é facilmente encontrada nos dias atuais. Conforme pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ligado ao Ministério do Planejamento, e a ONU Mulheres, em 2015 o Brasil contabilizou 6,24 milhões de trabalhadores domésticos, dentre esses, mais de 4 milhões eram mulheres negras.


Diante de uma sociedade racista, a mulher negra está na base da sociedade, sendo a última com acesso a oportunidades e a qualidade de vida, e é por isso que, muitas vezes o trabalho doméstico torna-se a única alternativa de sobrevivência.


Assim como no período colonial, é possível encontrar relatos atuais de trabalhadoras domésticas que são submetidas a condições precárias de trabalho, a salários abaixo do mínimo estabelecido pelo governo, a viverem em quartinhos sem ventilação.


“O trabalho doméstico no Brasil ainda é análogo à escravidão. As trabalhadoras domésticas tem cor e classe: São mulheres periféricas, pobres e pretas. É uma classe julgada como inferior”, Preta Rara, para o site Brasil de Fato¹.


Preta Rara, historiadora, rapper e ex empregada doméstica, cita em seus discursos que

“a senzala moderna é o quartinho da empregada”.

Em sua página no facebook, “Eu, empregada doméstica”, a rapper expõe os abusos morais e físicos que ela e tantas outras mulheres eram e são submetidas no mercado do trabalho doméstico.


Por muito tempo essa profissão foi invisibilizada, se tornando um trabalho escravo legalizado pela estrutura de uma sociedade que carrega grandes traços escravocratas. Podemos observar isto no direito: Em 1923, por meio do Decreto nº16.107, o trabalho era considerado um serviço locatário, foi após o movimento e luta das trabalhadoras domésticas que criaram a Lei 5.859/72, concedendo o direito à Carteira de Trabalho assinada, às férias de 20 dias úteis e à possibilidade de inserir a categoria no Sistema Previdenciário. A mais recente lei criada em prol da categoria foi a Lei Complementar nº 150 de 2015, no qual redigiram uma legislação para regular os direitos dos empregados domésticos possibilitando que estes, efetivamente, ganhassem ações judiciais trabalhistas.


É comum que os empregadores justifiquem a ilegalidade trabalhista (carga horária não respeitada, excesso de trabalho, remunerações baixas), utilizando a falácia “ela é como se fosse da família”. Este termo é usado para aproximar e gerar comoção da vítima (empregada doméstica), colocando o empregador no papel de “salvador”, assim como acontece nas demais relações abusivas. Apesar das formas precárias de trabalho, esta lei possibilitou a judicialização dos direitos das trabalhadoras domésticas, fortalecendo não só os debates dos sindicatos e movimentos sociais, mas também as mesmas na cobrança e luta de seus direitos.


Ainda assim, mesmo após a LC 150, há vários relatos de diversas formas de abusos no âmbito domiciliar. O caso mais recente, noticiado em todos os veículos de comunicação, foi a morte de Dona Cleonice, registrada como o primeiro falecimento por COVID-19 no Brasil. A mídia apresentou “Dona Cleonice” assim, sem sobrenome. As únicas informações divulgadas foram a sua idade, 63 anos, e que trabalhava como empregada doméstica na casa de um casal que haviam retornado de uma viagem na Europa e testaram positivo para o vírus. O casal estava de quarentena mas, mesmo assim, mantiveram os serviços da trabalhadora doméstica. Além de ser revoltante a não liberação da trabalhadora de seus serviços, é também revoltante a invisibilidade da doméstica, bem como as condições precárias e análogas ao período escravocrata, corroborando para a manutenção deste trabalho (escravo).


Além deste caso, é possível encontrar diversos relatos de empregadoras que reclamam sobre a necessidade de dispensar as trabalhadoras domésticas neste período de quarentena, sobre o pedido destas trabalhadoras para não trabalhar, e até mesmo como o caso abaixo.



Os relatos durante o período de pandemia escancarou a diferença social que a classe trabalhadora vem retratando a muito tempo e, por isso, demonstramos neste texto o quanto das mazelas sofridas são reflexos de um sistema escravocrata recente. Por mais que os privilegiados neguem a história, as estatísticas apontam que o Brasil é um país racista e que ainda considera seus empregados como bem semovente, impondo a todo momento a figura da mucama àquelas que muitas vezes deixam que criar os próprios filhos, para criar o de seus patrões.


Visto isso, acreditamos que este dia, 27 de abril, é destinado à luta e à resistência, e nós desejamos à todas trabalhadoras domésticas que sejam respeitadas e tenham salários justos, tempo com a própria família, acesso à educação e comida na mesa.




Juliana Lima

Advogada


Gabriela Tanabe

Relações Públicas




*Este artigo é produzido com o apoio do Fundo Baobá, por meio do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco.



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