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Pessoas Trans e Negras e o Direito de Existir

Atualizado: 29 de jan. de 2021

Começo dizendo que, nos últimos quatro anos, tenho vivência diária com pessoas trans, sobretudo no trabalho como Advogada/Chefa no Centro de Referência em Cidadania LGBT do Recife/PE.


Posso afirmar que a maioria das pessoas trans que atendi são negras (pretas e pardas) e que, praticamente, todas essas pessoas apresentaram histórico de violências e literal abandono familiar, desde a infância ou adolescência multiplicado pelo preconceito social.


No caso das pessoas trans negras, é justamente a conjunção de duas características pessoais, cor e identidade de gênero, que as colocaram como alvos do racismo, seja pela pretensa supremacia branca, seja pela imposta cisnormatividade.


Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais - Antra, pessoas negras (pardas ou pretas) representam 82% das pessoas trans mortas no Brasil.


No ano de 2019, foram confirmadas informações de 124 Assassinatos de pessoas Trans, sendo 121 Travestis e Mulheres Transexuais e 3 Homens Trans. Destes, encontramos notícias de que apenas 11 casos tiveram os suspeitos identificados, o que representa 8% dos dados,e que apenas 7% estão presos.

Na realidade racial, vejamos o que traz a Antra


Neste ano, tivemos 82% dos casos identificados como sendo de pessoas pretas e pardas, explicitando ainda mais os fatores da desigualdade racial nos dados de assassinatos contra pessoas trans, como já estava ratificado nas edições anteriores. Embora reconheçamos que a questão racial se dá de diversas formas e contextos em cada região/estado, atentemos ao fato de que é a população negra a que tem maiores chances de ser assassinada.

Nas páginas de pesquisa na internet, ao digitar a palavra transexual e, principalmente, travesti, os primeiros e recorrentes registros encontrados são, imediatamente e explicitamente, de violência e morte.


Diferentemente, no que se refere à palavra negro ou negra, não são encontrados explicitamente registros de violência e morte, pois há, desde sempre, um silenciamento sobre o racismo quanto à cor da pele das pessoas, como se no Brasil não houvesse racismo. Porém, basta procurar nos registros sobre vítimas de assassinatos que é possível encontrar as estarrecedoras estatísticas onde pessoas pretas e pardas (negras) aparecem como principais vítimas.


É tudo muito complexo, mas há propósitos políticos nisso tudo. Todo corpo é político, mesmo sem saber.


No sistema cisheteronormativo não se quer invisibilizar a violência contra corpos transexuais, pois existe uma crueldade tão macabra que é como se quisesse convencer todo mundo de que uma pessoa trans não deve existir na sociedade e ponto, sendo preteridas por idiossincrasia diversa, de tal forma que até a própria família dessas pessoas as rejeita e até as assassinam, muitas das vezes com as próprias mãos, quando incutem e seguem estas ideologias do desafeto.


Observem que não há notícias de que pais e/ou mães mataram seus filhos e/ou filhas por serem pessoas negras, ao contrário, há um cuidado vigilante para manter suas vidas, justamente porque o racismo pela cor da pele é tão mascarado, que é preciso ter estratégias para não morrer ou perder quem tanto se ama. O oposto ocorre com pessoas trans, incluo pessoas LGBTQI+ em geral, onde há um rechaço, uma rejeição dos próprios pais e mães e da família extensa em geral.


Portanto, ser uma pessoa trans e negra no Brasil é ser alvo ambulante e sem proteção, na maioria das vezes, nem da família.


Ninguém expulsa uma filha ou um filho de casa por ser pessoa negra, mas se for LGBTQI+ sim, e com uma surreal convicção de se que está “fazendo a coisa certa”! Entretanto, na maioria dos assassinatos no Brasil os alvos são pessoas negras. Entendem porque ser uma pessoa trans e negra é afrontar demais a biopolítica? Mas o que é biopolítica? Para Michel Foucault, seu idealizador, biopolítica se conceitua como o poder que o poder possui de regular a própria vida das pessoas, isso se coaduna com o pensamento de Achille Mbembe sobre necropolítica que é quando o Estado escolhe quem deve viver e quem deve morrer.


Estamos vivenciando isso agora, durante a pandemia da Covid-19, quando, por exemplo, em Manaus, o Estado está forçando as equipes de saúde a escolher quem terá ou não direito a usar o oxigênio disponível nos hospitais públicos.


Tudo isso é política e é cultura. Eu costumo entender e falar de cultura de forma ampliada, extensa a todos os sistemas e modos de convívio social. Quero dizer que é algo construído.



Arquivo pessoal da autora enquanto Advogada/Chefa do Centro LGBT do Recife.



Poderíamos, neste contexto, ter uma tendência a comemorar as existências universal e globalizada de determinadas culturas, como a cultura de paz, a cultura da equidade, a cultura do respeito aos direitos humanos, mas sempre há resistências a estas culturas, o que as faz existir em alguns lugares, muitas vezes de forma bastante precária, e ter escassez em outros, porém, quando se fala de racismo seja de raça e cor, contra pessoas LGBTQI+, religioso e outros, parece que a ideia de universalidade e globalização dessas culturas discriminatórias, como por exemplo a biopolítica e a necropolítica, consegue se enraizar com muito mais facilidade.


Mesmo em países que se dizem democráticos, não é possível observar, por exemplo, que a realidade de pessoas LGBTQI+ seja tranquila, sempre há um “porém”, um “mas”. Alguma ressalva sempre existe. Isso também ocorre com pessoas negras. Desta forma a junção destas duas características humanas vai afunilando perspectivas e oportunidades de vida, inclusive no sentido de existência física mesmo. É preciso, para além de ser democracia, exercer uma “democracia profunda” (conceito desenvolvido por Arnold Mindell) e real.


Será por causa das disputas de poder?


Soberba. Pretensão cruel de nivelamento de humanidades, o que favorece determinados grupos, prejudica muitíssimo outros, a ponto de quase aniquilá-los, mas que interfere negativamente de alguma forma em toda a coletividade.


Se eu fosse parar aqui para falar de pelo menos parte das diversas formas de violência sofridas por diversidade, ou não cisheteronormatividade e não branquitude, não teria como ser breve. Homens trans, mulheres trans, são alvos de violências comuns, mas também bastante específicas. Só para exemplificar, homens trans sofrem frequentemente com “estupro corretivo” enquanto mulheres trans são comumente desfiguradas enquanto estão sendo assassinadas. Vocês têm noção? Não tem como aprofundar aqui estas realidades, mas afirmo que são estruturas. Vocês percebem?


Importante informar que, até onde eu sei, uma pessoa não se torna trans, a não ser pelo que normativamente lhe designam a partir do sexo biológico apresentado no parto, mas nasce trans, até por isso mesmo.


Para finalizar, por ora, deixo uma pergunta: O que você faria se você fosse a pessoa responsável pelo poder/dever familiar ou guarda para com uma pessoas trans?

SUGESTÃO DE LEITURA

Como sugestão de leitura eu indico:

  1. O livro Debates e Reflexões sobre Direitos da Diversidade Sexual e de Gênero, realizado pela Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/PE, da qual faço parte desde 2017, onde escrevi o artigo DO DIREITO AO PLEITO POR PENSÃO ALIMENTÍCIA PARA CRIANÇAS, ADOLESCENTES E JOVENS FORA DOS IMPOSTOS PADRÕES CISHETERONORMATIVOS POR ILÍCITO CIVIL DE EXPULSÃO DE CASA COMETIDO PELA FAMÍLIA NUCLEAR E/OU RESPONSÁVEIS LEGAIS (SILVA, Lígia V. F. da, 2019) e que pode ser encontrado na página 85 do livro físico e na página 79 do e-book disponível através do link https://oabpe.org.br/wp-content/uploads/2019/12/E-BOOK-LIVRO-DEBATE-OAB.pdf

  2. Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2019 / Bruna G. Benevides, Sayonara Naider Bonfim Nogueira (Orgs). assassinatos contra travestis brasileiras e violência e transexuais em 2019



Lígia V. F. da Silva (Lígia Verner). Advogada; Especialista em Direito Administrativo pela UFPE; Professora; Pesquisadora e Produtora Cultural.






*Este artigo é produzido com o apoio do Fundo Baobá, por meio do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Ele reflete a opinião da Abayomi Juristas Negras e não dos apoiadores que contribuíram com sua produção.

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