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Você sabe o que é COLORISMO?


Vocês pediram e eu vou tratar de COLORISMO no nosso texto de hoje. Como o tema é mais do que "tons de pele", abordo em mais de um artigo, certo? Hoje, vou falar um pouco de história e auto-identificação da negritude.



Usei a imagem do projeto @humanae_project porque acho um bom referencial para entendemos negritudes e branquitudes.


Partindo do princípio: raça foi uma categoria criada pela branquitude, que o fez quanto a OUTRES.


Para nós, nos moldes de Neusa Santos, Abdias, Lélia, Sueli, raça é um grupo engendrado como crivo das posições na estrutura social - envolve critérios biológicos, econômicos, culturais e de "prestígio" social.


Na história brasileira, o colorismo ou a "pigmentocracia" atuou como um dos instrumentos da branquitude TOLERAR mais ou menos os corpos negros. Faço questão de ressaltar o "tolerar", porque corpos não brancos, afirma Sueli Carneiro, não são aceitos ou absorvidos como iguais pela branquitude. Somos, ao revés, postos em locais de subalternizacão dos quais tentou-se, historicamente, dissociar-se para crescer.


O processo de desestímulo à identificação de negritude, no Brasil, contou com a narrativa de Gilberto Freyre sobre miscigenação e os mitos da pretensa democracia racial que buscaram, pela soma de evidências, suprimir a auto-identificação e a luta por REPARAÇÃO. A ausência de segregação racial no pós-abolição foi ficta - ao negro, enquanto categoria, se associavam TODAS as premissas negativas pautadas na eugenia. Monteiro Lobato e Nina Rodrigues que o digam.


Disso, decorreu uma busca por distanciamento individual - nos mostra Neusa Santos - porque a introjeção cultural de anos de escravização e desigualdade racial fez a negritude temer SER negra. Neusa nos fala da criação do "meio negro", que rompe individualmente com o sistema ao crescer, mas para isso precisa absorver valores e cultura brancas.


No início do século XX, alcunha-se a ideia de pardismo - pardo era o escravo liberto, o "mestiço" de toda natureza, o indígena... Nos anos de ditadura varguista inspirada no fascismo, suprimem dos censos o critério "raça ou cor".


É preciso entender que houve dois processos paralelos quando falamos de colorismo, para entender o “tornar-se negro”, nos dizeres de Neusa Santos.


O primeiro processo, externo à negritude, foi o intuito político de retirar a identidade negra de pauta, na busca de embranquecer o país e evitar processos de reparação racial. Dado que não se conseguiu aplicar a eugenia nos termos intentados – com estupros, deportação de pessoas negras, impedimento de ingresso de negros e negras no Brasil, "importação” de pessoas brancas, aprisionamento e morte, – sobre a imensa parcela negra no Brasil, a aplicação do discurso de mestiçagem e a supressão de dados sobre raça/etnia foram meios de legitimar a ideia de não negritude.


O segundo ponto, introjetado, foi o processo de negras e negros de buscar distanciamento dos vínculos com a negritude, na tentativa de dissociar a própria imagem dos estigmas de marginalização. É preciso perceber quão forte, psiquicamente, é o impacto da escravização e da precarização da imagem de pessoas negras no período pós-colonial. Para isso, Fanon, Neusa Santos e Sueli Carneiro são novamente invocados – percebe-se, desde as relações intrafamiliares, como a negação do pertencimento racial é e foi um dispositivo.


Internamente, na vivência negra, houve historicamente uma expectativa de que o embranquecimento posicione a família negra mais distante dos vínculos de sofrimento passados. Não se pode dizer, por óbvio e ao contrário das repetições comuns, que isso se deva a racismo de pessoas negras contra pessoas negras – isso não existe. Racismo é relação de poder, subalternização somente exercida por quem está num vértice de poder. O que se verifica, cotidianamente, é que a dissolução do ideal racial de pertencimento buscou, por muitos anos, evitar a quem era educada(o) dentro do seio familiar negro problemas resultantes da marginalização - dos estigmas, mesmo.


Em certa busca de defesa contra as próprias mazelas, muitas vezes a família negra orienta a psique vinculando-se ao ideal do ego brancocêntrico, porque este é o dominante. Assim, muito se ouve sobre “limpar o útero”. Também assim, o pertencimento de não retintas(os) é questionado.


Como entender que um não retinto ocupe a mesma categoria - negritude - diante de um retinto? Como compreender a inexistência de "privilégio" dos "light skin", "afrobeges", "mestiços", "pardinhos", "brancos encardidos", quando nem em suas famílias são vistas(os) como negras(os)? Se não é privilégio, como se pode diferenciar pessoas negras daquelas cujas ascendências remonta à negritude, mas são não-negras? Essa pergunta é respondida pelas formulações do movimento negro nos anos 60 a 80.


Naquelas décadas, o Movimento se ocupou de uma análise de desenvolvimento sociopolítico e econômico da negritude. Percebeu-se que no Brasil a busca de "suavização" da leitura sobre ser negra(o), através de mecanismos diversos (volta para ver a pt 2) desmobilizou a categoria negritude. Kabengele Munanga cita pesquisa de Clóvis Moura em que se identificaram mais de 100 autodenominações para não-brancas(os), denotando a internalização do distanciamento. Principalmente por conta disso, o pertencimento de não retintas(os) é internalizado como “branco” para parte de suas famílias. Ocorre que, como nos narra Sueli Carneiro, em algum momento o não retinto irá se deparar com a branquitude e perceber que seu corpo não é branco, sua socialização não foi branca - no máximo, uma imitação imperfeita do ego da branquitude. A negação da subjetividade entra em conflito. Também Neusa dos Santos o diz.


Para além da classificação cromática, números comprovam hoje o que o Movimento Negro já apontava como necessidade política - as identidades "pardo" e "preto" possuem números extremamente próximos de desemprego, letalidade, renda, violências sofridas, encarceramento e um ABISMO quanto à branquitude. As vivências da negritude são, portanto, um ponto diferencial que desde logo remete à desconstrução da noção de privilégio - privilégio, diz Juliana Borges, é "poder". E a negritude não-retinta não possui poder.


No entanto, há vantagens de tolerância. E, aqui, é muito importante dizer que QUALQUER pessoa que discuta colorismo com honestidade precisa reconhecer que o "passing" é maior entre não retintas(os), sua possibilidade de ocupar locais visíveis é mais ampla. Sendo o ideal do ego narcísico de uma sociedade pós-colonial o fenótipo branco, a rejeição social é suavizada tão menos características negroides se apresentem entre não retintas(os), especialmente se observamos que nosso meio decorre de um modelo tradicional de darwinismo social, adotado no pós-abolição, conforme narra Schwarcz. As mazelas do povo negro, ao revés de serem reparadas, eram “justificadas” por preceitos racializadores – o grau de “degenerescência” do indivíduo, a miséria, a criminalidade seria inerente à negritude retinta ou “mestiça”. Os efeitos socioeconômicos disso são vistos até hoje nas histórias de famílias marcadas pela vivência afrodiaspórica. Por que observar isso importa?


Como informa Nilma Lino Gomes, além da pele, a vivência, a tomada de consciência, afirmação e construção de solidariedade entre o povo negro são partes do processo de construção da negritude como conceito e movimento. Percebam, negritude é um conceito-soma, politicamente invocado por nós, que exige compreensão mais densa do que “colorimetria”, mas que JAMAIS permitirá o uso da cor não branca ou de ancestralidade negra remota pura e simplesmente. É imprescindível salientar o óbvio - nem toda pessoa não branca é pessoa negra e se percebe isso no contraste de passing, nas vivências sociais, na intrafamiliaridade do racismo – porque negras(os) não retintos costumam ser “o outro” em suas famílias.


Aproveitando-se da luta do movimento que discute negritude há MUITOS anos, alguns discursos têm sido utilizados por pessoas interessadas em utilizar culturalmente de seu passing de “mestiçagem cômoda” ou “afroconveniência”. Esta utilização é abusiva e apropriatória. Portanto, o alinhamento político da negritude e a vivência negra precisam ser pautados sempre que se está a tratar disso. Vivência aqui é entendida como um conjunto de alocações, dificuldades e impedimentos de acesso, sabotagens estruturais que a negritude experimenta em franco contraste com a branquitude. E posicionamento político tem a ver com assumir-se negra(o) com todas as implicações que este posicionamento implica.


É preciso tomar o papel de negra(o), além de nascer negra(o), numa sociedade em que se finge não notar a negritude de alguns para desmobilizar a negritude de todo o grupo racialmente afetado pelo racismo e a escravização. É preciso sair do conforto da máscara branca pregada à cara da passabilidade.



Ana Gabriela Ferreira

Professora de Direito Penal e Criminologia, Advogada Criminalista e Pesquisadora, autora de capítulos de livro e organizadora de livros em publicação. Mestra em Direito Público, com ênfase em Direito Penal, pela UFBA. Especialista em Direito e Gênero pela UBA, UPittsburgh e Universidad Diego Portalez e pesquisadora em Necropolítica e Feminismo Negro. É especializanda em Estudos Afrolatinoamericanos pela CLACSO. É membro fundadora da Articulação Interamericana de Mulheres Negras nas Ciências Criminais. Colaboradora da Mídia Digital @pretitudes. Integra a Abayomi Juristas Negras. 





*Este artigo é produzido com o apoio do Fundo Baobá, por meio do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco.


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